Me deixe entrar - talvez o texto mais importante desse blog.



Existe uma mágica na arte. Uma mágica particular que acontece quando as pessoas estão abertas. A mágica consiste em permitir que existam milhões e milhões de significados dentro de uma única obra. 

Foi assim, entre infindáveis possibilidades , que a música da Adele teve pra mim um significado particular.

Te convido a ouvir a música dando o play logo abaixo e também lendo a tradução do primeiro trecho, que aparece logo em seguida.



"Não há nenhum ouro nesse rio
No qual tenho lavado minhas mãos há tanto tempo
Sei que há esperança nessas águas
Mas não consigo me obrigar a nadar
Enquanto eu estou afogando neste silêncio
Querido, me deixe entrar

Pega leve comigo, amor
Eu ainda era uma criança
Não tive a oportunidade de
Sentir o mundo ao meu redor
Não tive tempo para escolher o que escolhi fazer

Então, pega leve comigo"

~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~

Essa música toca em mim com uma letra cheia de conexões e eu consigo me ver narrando essa história. Vamos lá.

~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ 

Eu tive amnésia quando era criança. Amnésia dissociativa, para ser mais exata. Esse tipo de reação do cérebro é causado por um trauma ou estresse agudo, fazendo com que a pessoa se esqueça de coisas importantes que ela viveu.

E eu esqueci. Por uns 10 anos.

Sofri abuso sexual, próximo dos 7 anos e não sei quanto tempo durou. Eu já estava com quase 18 quando lembrei e não foi tudo de uma vez. Tive um flash de memória e fiquei chocada com minha capacidade de descobrir algo assim, do nada. Do nada?

Desde então, 10 anos depois, eu ainda tenho flashs e me lembro das coisas. Faz poucos meses que lembrei que ele comprava chocolate branco pra mim e reconheci, naquele sabor, a existência de uma lembrança.

Eu estaria mentindo pra você se eu dissesse que estou escrevendo esse texto com facilidade. Apesar de deixar fluir as palavras e simplesmente buscar sentido, meu peito dói. A respiração fica pesada e as lágrimas vêm lentamente, como os flashs que me acompanham há uma década.

Hoje eu lembro do cheiro da casa. Lembro dos olhares e do sentimento de segredo que ele criava. Lembro do toque com uma nitidez que eu juro que me dói lá no mais profundo de mim. E lembro das palavras mansas que me pediam pra guardar aquilo tudo comigo, aproveitando que aprendi desde pequena a obedecer os mais velhos e não questionar.

Eu só não lembro da voz. Já me esforcei muito, mas essa memória ainda não tenho. Pode ser que eu lembre um dia?

Até lá, só a minha voz ecoa dentro de mim. 

Demorei um longo tempo pra fazer a voz ecoar pra fora. Me sentia segura para contar para estranhos, mas completamente aprisionada ao me imaginar contando para as pessoas que me viram crescer.
Ou não viram. Não o tempo todo. Não naqueles dias. Não quando eu precisava de olhares atentos perto de mim.

Quando tomei coragem - e não se iludam, é preciso muita coragem - pra falar, eu falei. Fui falando aos poucos, sentindo a avalanche que estava inundado a minha vida.

Uma vez, em uma sessão de acupuntura, minha doce terapeuta me contou que a filha dela era lésbica e tinha dito isso aos pais recentemente. Ao me confessar uma informação tão íntima de sua vida, ela também me disse que nunca tinha visto a filha dela tão feliz, que estava morando com uma mulher e que a filha dela brilhava.

Aproveitei o momento pra dizer que eu também tinha um assunto para, quem sabe um dia, contar aos meus pais. E contei a ela.
Lembro da mão quentinha dela tocando no meu ombro e me pedindo para me abrir com eles. Por mim, para que eu não precisasse guardar isso sozinha.

Eu precisei de um tempo.

Quando contei, tanta coisa mudou em mim. Não sei se me senti mais leve na hora, mas sei que me senti sozinha. E não só quando contei pra minha mãe, que contou pro meu pai, meus irmãos e outras pessoas. Me senti sozinha sempre. 

Com o tempo, a avalanche realmente tomou conta de mim. As pessoas não sabiam lidar com as minhas informações e, ao mesmo tempo em que tinham curiosidade, pareciam cheias de certezas de que o pior já tinha passado. De que o abusador já tinha morrido e de que não havia mais nada a se fazer.

E eu precisei de um tempo.

Precisei de um tempo até reunir nova coragem pra dizer que as pessoas estavam olhando para o lado errado. Eu ainda continuava ali, não?

Sou invisível aqui? Por acaso não continuo aqui, catando os pedaços que sobrou da minha confiança nas pessoas, reunindo fragmentos de mim para enfrentar toda aquela dor?

Eu ainda preciso de um tempo. Preciso pq não sinto que as pessoas estão preparadas para pegar leve comigo, mesmo que eu fosse uma criança e não tivesse a oportunidade de sentir o mundo ao meu redor. Não tive tempo para escolher o que escolhi fazer, como descreve a música por onde comecei a mostrar minha história.

Tenho tantas coisas pra contar nesse meu lugar seguro. Pode não parecer seguro pq eu me exponho, mas é pq me sinto preparada para que ele seja sobre mim e não mais sobre os outros.

Ainda posso contar muitas coisas sobre essa história. Dos 29 anos que já vivi, há 22 convivo com ela. Conheço ela em profundidade e posso te garantir que, por mais que você já tenha me ouvido falar sobre isso, sempre vai descobrir algo novo quando escrevo.

Você pode me acompanhar se quiser e pode até passar a ouvir a música com ouvidos semelhantes ao meus. Mas para ouvir de verdade, talvez, é preciso me deixar entrar e se desarmar da certeza de que sabe muito sobre de mim.

~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~

"Não há nenhum ouro nesse rio
No qual, há tanto tempo, tenho lavado minhas mãos
Sei que há esperança nessas águas
Mas não consigo me obrigar a nadar
Enquanto eu estou afogando neste silêncio
Querido, me deixe entrar

Pega leve comigo, querido!
Eu ainda era uma criança
Não tive a oportunidade de
Sentir o mundo ao meu redor
Não tive tempo para escolher o que escolhi fazer

Então, pega leve comigo"



Comentários

  1. 😭😭😭😭😭sempre estarei aberta para ouvi-la. Quanto arrependimento em ter ajudado trazer essas pessoas parra morar perto. Infelizmente precisava trabalhar...😭😭😭😭😭

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  2. Me sinto tão impotente nisso tudo! Que tristeza! Velho maldito

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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