Tive um sonho essa noite




Tive um sonho essa noite.

Não sei como começou, só sei que estava na casa em que tudo aconteceu na minha infância.

O contexto era o seguinte: eu não morava na casa, mas, por alguma razão, tinha que limpar tudo lá dentro porque iria me mudar da cidade.

Eu sei, é confuso. Meus pais e meu esposo estavam se mudando também. Minha mãe iria pra algum lugar sozinha e eu tinha que procurar um apartamento para viver. Mas antes de ir embora, eu tinha que entrar na casa - que nem era minha - e limpar.

Sonhei que entrei e tudo estava diferente lá dentro.

As paredes esfarelavam e o chão era de terra batida. Por todos os lugares tinha muita sujeira e coisas que a gente só vê quando está de partida: objetos abandonados, teias de aranha, rachaduras e buracos na parede.

Só consegui acessar parte da cozinha e um quarto. O quarto do casal.

A porta do quarto era feita com madeiras velhas e mal pregadas. Ela tinha uma mola que a pressionava a ficar sempre fechada. Você já teve que abrir uma porteira com esse mecanismo?

A mola força a porta a ficar fechada e você precisa superar a resistência dela para conseguir abrir.

Lembro que precisei colocar uma grande força para abrir a porta e senti muito incômodo com o que encontrei lá dentro.

De fora a fora do cômodo, tinham roupas penduradas em um varal. 

As roupas do velho e da minha vozinha estavam lá. Sabe quando a roupa resseca no varal por causa do sol e fica dura? Então, estavam assim.

Tinham calças, meias e cuecas dele. Eu reconheci as roupas, acredita? Sim, pra mim é difícil de acreditar! Reconheci a cor da calça, o tecido, os detalhes. Reconheci a cor das meias!

O cômodo parecia que ia desabar a qualquer momento, mas eu precisava tirar as coisas antes de sair. Lembro de ter pensado: tudo isso vai para o lixo. Mal vou encostar, eu só preciso de um latão de lixo.

Acordei antes de dar os próximos passos. Me mexi na cama e senti o peso de um gato nos meus pés.

Peguei o celular e olhei para o relógio: 5:13 da manhã. Decidi anotar as coisas e aqui estou, revivendo as cenas que acabei de descrever.

Fechei os olhos para enxergar direito. Um paradoxo, não é? Mas a cena está dentro de mim, não fora.

Tá bem frio essa noite e ainda tá escuro lá fora. O trem tá passando nesse exato momento.

Engraçado, durante o sonho eu estava sempre sozinha. Meu sentimento era de solidão também.

Eu ia sair daquele lugar para morar sozinha, em um apartamento que estava escolhendo, no centro da capital.

Lembro de sentir uma dor grande ao me dar conta que todos estavam de partida, em especial a minha mãe. Eu estava limpando tudo para ir viver a minha vida em outro lugar.

Um sonho que achei tão simbólico...

A realidade é que a casa que sofri tudo isso nem existe mais. As paredes eram diferentes do sonho, a distribuição dos cômodos também. Nenhuma porta tinha uma mola e o chão não era de terra batida.

Mas as roupas eram as dele! No sonho elas estavam lavadas no varal, mas na vida real elas cheiravam a urina. Um cheiro que me perturba profundamente até hoje, me causando repulsa imediata toda vez que me deparo com algum odor semelhante.

O intrigante é que acordei me questionando se minha avó não sabia de nada. Nunca pensei nisso, nunca! Sempre a vi como uma vítima dele. Por que acordei com essa dúvida?

Juro, nunca pensei nisso antes.

Me doeu existir a possibilidade de um adulto a menos ter um olhar de cuidado comigo. Eu era apenas uma criança e não fazia a menor ideia do que todos aqueles abusos significavam. Eu só sabia que era algo errado quando ele me pedia: não conta pra ninguém.

Você pode ser perguntar: por que você não contou? Por que você não gritou?

E eu vou te responder.

Eu era uma criança obediente, apesar de saber que os meus irmãos podem não concordar com essa afirmação.

Fui ensinada a obedecer os mais velhos e não questionar as coisas que eles diziam. O que um "avô" dizia, estava dito. Mesmo que precisasse ser questionado, eu não tinha esse direito.

Então, eu passei por tudo aquilo calada. Calada e silenciada.

Hoje, com o poder da voz que tenho e com a coragem que encontrei em mim durante todos esses anos, sei que nenhum adulto consegue me calar de novo. E sei, enquanto adulta que sou, que me dedico para nunca silenciar uma criança.

Vou encerrar o texto por aqui. Meu peito tá doendo e eu preciso descansar.

Tenho certeza que a solidão do sonho é a mesma que convivi todos esses anos da minha vida. A mesma solidão que é lidar com essas lembranças repentinas, de ter que limpar todo o lixo que ficou.

Hoje eu entendo que essa é uma tarefa solitária e minha. Só minha.

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Sim, essa foto sou eu, sentada na janela da casa onde tudo acontecia bem embaixo do nariz de vários adultos diferentes. 

Comentários

  1. Nunca passou pelo meu pensamento que vc iria passar por isso. Hoje tenho outro olhar e sei que não se pode confiar em ninguém e que pessoas escrupulosas podem estar mais perto da gente do imaginamos.
    Se pudesse voltar no tempo...faria tudo diferente...


    .

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